Como (e por que) você vê África?
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Como (e por que) você vê África?


Obs: Texto escrito por Karoline Tubben - kvstubben@gmail.com

 

A primeira – e mais antiga – resposta atribui responsabilidade ao colonialismo. É inegável que quatro séculos de uma violenta dominação econômica, epistemológica e cultural institucionalizou efeitos tanto materiais como imateriais até hoje. A eficácia do colonialismo enquanto modelo de exploração material e discursivo se deu por sua dinamicidade, ou seja, o processo de colonização europeu sobre a África envolveu as instituições da época, desde o protagonismo governamental passando pelo endosso da igreja e da ciência até o gozo do mercado. No entanto, o pulo do gato desse modelo estava no sistema de narrativas construídas para justificar os genocídios e epistemicídios realizados pelos colonizadores, removendo dos povos colonizados qualquer tipo de agência (MUDIMBE, 1988).Para a maioria de nós, quando pensamos em África, algumas palavras vêm à mente como: guerra; fome e pobreza. Também algumas imagens marcantes  estereotipadas que vimos em alguma manchete de jornal ou viralizando no Facebook de crianças com costelas proeminentes ou favelas em piores condições do que as do Rio de Janeiro. Provavelmente nos surpreenderíamos se encarássemos a realidade de que África – que não é grande bloco de terra, mas sim continente composto por 54 Estados – é muito mais do que nosso imaginário coletivo nos permite considerar. Ruanda é um exemplo de igualdade de gênero no ambiente político; Nigéria é lar da segunda maior indústria do cinema do mundo, a economia etíope cresce mais do que a China e a tunisiana é mais complexa do que a do Brasil e Rússia. Mas porque então ninguém - Mas por que pouquíssimas pessoas sabem ou tem acesso a estes fatos?

Alguns podem refutar esse argumento pontuando que a maioria dos Estados africanos conquistou sua independência desde 1960, de modo que tiveram tempo o suficiente para se desacorrentar das amarras que o colonialismo os prendeu por tanto tempo. Todavia, muitas das retóricas que serviram como pilares da perpetuação do colonialismo continuam vigentes e vibrantes ao nosso redor, um exemplo é o famoso complexo do branco salvador. Nos primórdios da colonização europeia na África, o desbravamento do mundo além do Mediterrâneo era subsidiado pela ideia de que os brancos tinham a missão e o dever divino de espalhar a civilização ao redor do globo fazendo uso de todos os meios necessários para tal. Assim, somente ao se adaptarem à eurocentricidade, ou seja, se aderissem os valores culturais, sociais e econômicos dos europeusos africanos seriam “salvos”.

Essa narrativa pode parecer absurda no século XXI – embora não deveria considerando os recentes episódios que expuseram o racismo latente da sociedade internacional, como o exemplo do assassinato de George Floyd nos Estados Unidos –, mas é uma das bases do fenômeno conhecido como afropessimismo. Essa remodelagem neoliberal da retórica do continente africano enquanto incapaz de se autogovernar floresceu a partir da década de 1980, um marco da economia internacional, em especial para regiões em desenvolvimento como a América Latina e África – a década perdida. A narrativa afropessimista viu na dissolução do otimismo trazido pela onda de descolonização nos anos 1960 pela crise econômica o contexto perfeito para perpetuar a ideia de que os novos Estados estavam condenados a serem sempre necessitados da ajuda do Norte Global. A ausência da democracia liberal – um modelo governamental padrão na Europa e Estados Unidos – foi apontada como uma justificativa para o aparente fracasso do progresso social africano, além de organizações como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, que criticavam o modelo econômico do continente centralizado no Estado – destoante do padrão estadunidense e europeu (B’BÉRI, LOUW, 2011).

Para além disso, a engenhosidade – ou crueldade – do colonialismo está em sua capacidade de se adaptar às constantes reformas socias que a sociedade internacional perpassa. Nesse sentido, é possível identificar o complexo do branco salvador agindo claramente nas fotos que vemos de amigos ou, mais frequentemente, celebridades posando com crianças africanas no Instagram. Quando essas pessoas publicam textos se delongando sobre como as dificuldades e jornadas dessas crianças às inspiram a ter mais gratidão e compaixão com sua própria vida, as crianças perdem qualquer possibilidade de agência. Elas são objetificadas e transformadas em um pano de fundo para o processo de autoconhecimento e desenvolvimento da pessoa que tirou a foto – provavelmente sem a autorização da criança ou de um responsável em primeiro lugar (BAKAR, 2019).

Ademais, o complexo do branco salvador se faz presente no constante debate de que o mundo precisa ser salvo. Não me entenda mal, há muito que se mudar no mundo onde vivemos, a começar pelo racismo estrutural, a desigualdade de gênero que mata mulheres todos os dias e o desinteresse generalizado pela agenda de mudanças climáticas, contudo, é preciso que ponhamos um pouco mais de esforço para analisar como essas mudanças vão acontecer. No núcleo da ideia de que países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento – uma noção a ser questionada por si só – precisam de auxílio para alcançarem progresso, por exemplo, seja de uma doação individual ou da intervenção de uma organização internacional, está a noção de que esses povos permanecem incapazes. Isso se dá pois costumamos partir do pressuposto de que o outro – nesse caso, África – precisa de ajuda, mas não o consultamos, repetindo o ciclo de retirada de agência desses povos. Chegamos a considerar que o outro que julgamos necessitado talvez tenha uma opinião sobre seu status quo? Nos questionamos porque tendemos a julgar que sabemos o que é melhor para o outro melhor do que eles mesmos? (COLE, 2012).

Um outro instrumento contemporâneo da perenização do colonialismo é a mídia, mais especificamente, a produção de conteúdo nominada “pornografia da pobreza”. O termo, cunhado por Jorgen Lissner em 1981, vem sendo usado desde então para designar propagandas voltadas para campanhas de ajuda à países em desenvolvimento que costumavam marketear o sofrimento dessas comunidades, objetificando-o pelo simples –e barato – valor midiático. A grande questão por trás desses vídeos que continuam sendo produzidos e compartilhados é que eles não oferecem ao espectador nenhum tipo de contexto da suposta tragédia que está sendo exposta ou das pessoas afetadas por ela embora tenham o importante objetivo de conscientizar o público de situações que não costumamos nos atentar (HIRSH, 2017).

Assim, essas campanhas, ao invés de instigarem a empatia contribuem para aprofundar a institucionalização da divisão colonial do “eu” e do “outro”. Quem assiste (o “eu” branco) é o detentor dos recursos e da benevolência, ao passo que, quem foi submetido ao escrutínio da câmera (o “outro” negro) é o necessitado de ajuda (HIRSH, 2017). Ainda, esse tipo de narrativa como a pornografia da miséria vem contribuindo para a expansão do afropessimismo para além da década de 1980, tornando África, no senso comum, um lugar sem esperança, condenado à maus governos e economias piores ainda, onde o povo negro é uma vítima constante de sua própria incapacidade de se adequar às normas e valores eurocêntricos (B’BÉRI, LOUW, 2011).

É importante frisar que sim, África convive com uma série de problemas como fome, grupos terroristas, governos autoritários, corrupção e brutalidade policial, dentre outros, no entanto, sua população não é inerte e passiva como o pensamento colonial nos obriga a enxerga-la. Esses cidadãos protestam, marcham pelos seus direitos, fazem revoluções, conquistam independências, assim como qualquer outra sociedade europeia ou estadunidense. Contrariando o discurso colonial, África tem voz e ela grita, embora o sistema seja desenhado para que se cale (COLE, 2012).

Isto posto, narrativas são complexas e, em hipótese alguma neutras, – nem mesmo esse post escrito por uma autora branca –, resumir um debate tão vasto como esse em tão poucas palavras é problemático e talvez simplista, entretanto, é fundamental que comecemos a buscar narrativas mais diversas.  Em primeiro lugar é preciso respeitar a agência dos povos africanos, compreendendo que, mesmo suas mazelas sendo afetadas – até mesmo causadas – como resultados de uma politica global. Além disso, para entender que África é mais do que um estereótipo, assim como o Brasil não se resume à carnaval, corrupção e futebol é preciso ver além do que Chimamanda Adichie (2009) chama de história única. Buscar ler autores africanos, acessar portais de notícias não ocidentais ou investigar o contexto das cenas que passam nos vídeos nas redes socias - quais países injetam dinheiro nas guerras que nos comovem, por exemplo – pode ser um bom começo.

REFERÊNCIAS

BAKAR, Faima. What is a white saviour complex? METRO News. 2019. Disponível em: https://metro.co.uk/2019/03/06/what-is-a-white-saviour-complex-8793979/ Acesso em: 4 dez. 2021.

B’BÉRI, Boulou Ebanda de, LOUW, P. Eric. Afropessimism: a genealogy of discourse. Critical Arts: South-North Cultural and Media Studies. 2011. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/02560046.2011.615118. Acesso em: 4 dez. 2021.

COLE, Teju. The White-Savior Industrial Complex. The Atlantic. 2019. Disponível em: https://www.theatlantic.com/international/archive/2012/03/the-white-savior-industrial-complex/254843/ Acesso em: 4 dez. 2021.

HIRSCH, Afua. Ed Sheeran means well but this poverty porn has to stop. The Guardian. 2017. Disponível em: https://www.theguardian.com/commentisfree/2017/dec/05/ed-sheeran-poverty-porn-activism-aid-yemen-liberia Acesso em: 4 dez. 2021.

MUDIMBE, Valentin-Yves. The invention of Africa. 1988. Indiana University Press. Disponível em: https://libcom.org/files/zz_v._y._mudimbe_the_invention_of_africa_gnosis_pbook4you_1.pdf. Acesso em: 5 dez. 2021.

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