O protagonismo das mulheres na comunidade do Kabiria
“(...) Dizem que não existem pré-requisitos para ser uma pessoa de valor, você nasce com valor e dignidade. E eu acho que esta é uma mensagem que todas as mulheres deveriam escutar... elas precisam entender que a culpa não é delas e que elas não são indignas” (Viola Davis)
Empoderar é o “processo no qual indivíduos, organizações e comunidades adquirem recursos que lhes permitem ter voz, visibilidade, influência e capacidade de agir e decidir sobre a sua própria vida”, esta é a definição dada por Rodrigo Rossi Horochovski e Gisele Meirelles no livro "Problematizando o conceito do empoderamento”.
Portanto, empoderar não é somente fortalecer, é também proporcionar meios para a autonomia e emancipação do indivíduo, de modo que ele possa escolher por si e para si. Por isso, falar de protagonismo feminino é também falar de empoderamento, são dois lados da mesma moeda.
No mês de março é comemorado o dia internacional da mulher, e com ele sempre é uma ótima oportunidade para relatar o modo como elas estão vivendo em sociedade, seja no ambiente doméstico, seja nas escolas ou até mesmo no mercado de trabalho.
Muitas vezes, desvincular a mulher ao ambiente doméstico e à sexualidade é um trabalho complexo e extremamente desafiador, isso porque mulheres são associadas, histórica e socialmente, a prole, a casa e a reprodução, mas também porque espera-se que mesmo estando em ambientes públicos, ela se responsabilize pelo doméstico, mesmo que para isso haja uma sobrecarga emocional e laboral.
Quando o Hai Africa foi fundado em 2015, começamos a identificar que estávamos inseridos em um cenário com inúmeras violências, umas nítidas e perceptíveis e outras mais sutis, mas muito comuns, como a fome. Essa realidade assim que bateu na nossa porta nos deu o impulso necessário para encontrarmos alternativas que pudessem garantir que nossos babies conseguissem se alimentar aos finais de semana e que ao retornarem às aulas nas segundas-feiras pudessem estar nutridos e prontos para mais um dia de aula.
A realidade de termos majoritariamente alunos com monoparentalidade feminina foi nossa primeira constatação de que precisávamos nos aliar àquelas mulheres, não apenas para devolver-lhes a autoestima, mas também para que elas pudessem gerar renda e garantir seu sustento e de seus filhos.
De acordo com a cartilha da Organização das Nações Unidas para as Mulheres, intitulada como “Princípios de Empoderamento das Mulheres", existem alguns pilares que podem tornar o protagonismo feminino mais efetivo e decisivo em várias frentes e lugares e conseguimos entender o porquê as mulheres da comunidade do Kabira são tão fundamentais para o trabalho do Hai Africa.
As mamas e o “princípio. 7”: Promover a igualdade através de iniciativas e defesa comunitária.
Um grupo de mulheres está reunido em um pequeno cômodo. Todas estão sentadas e espaçadas por ele, a maioria está sentada no chão. Enquanto algumas costuram tecidos coloridos, umas trançam com ajuda dos pés e outras lixam para finalizar o acabamento de peças cuidadosamente desenhadas. Junto delas seus filhos, que seguem brincando ou mesmo dormindo em um porta-bebês coloridos, amarrados em suas costas.
Essa é a rotina das nossas mamas, nome carinhosamente dado às mulheres que trabalham confeccionando produtos para a loja que recebeu o nome delas em vossa homenagem: Loja das Mamas. Elas, que em meio a uma série de adversidades diárias, encontram meios de garantir a subsistência delas e de seus filhos, seja confeccionando acessórios, seja vendendo verduras, ovos ou alimentos nas ruas para complementar a renda familiar.
A história de vida delas não foge do que apontam as estatísticas; mães solo, analfabetas ou semi-analfabetas, grande parte única responsável pela renda da casa, e muitas já sofreram ou sofrem com a violência doméstica.
A Loja das Mamas, em parceria com a Project Três, foi (e é) uma construção coletiva que se tornou realidade para impactar a vida destas mulheres. Embora haja um cenário de escassez e adversidades, nossas mamas são sinônimo de resiliência e coragem. A autora Isabel Maria Casimiro, nos conta em seu livro “Paz na Terra, Guerra em Casa” que as mulheres resistem e se reinventam a partir de suas necessidades de sobrevivência, o que a autora chamou de “feminismo popular”, de modo que conseguem e se adaptar e buscar respostas imediatas às necessidades objetivas de sobrevivência e que incorporam reivindicações próprias, ainda que sem consciência da luta feminista que elas mesmas protagonizam.
Nossas teachers, colaboradoras, mamas e “príncipio 4”: Promover a educação, a formação e o desenvolvimento profissional das mulheres.
O planejamento de aula está finalizado, a sala de aula organizada, os materiais que serão utilizados também, o cardápio já está definido e em poucos minutos os babies chegarão para mais um dia de aula.
Toda essa rotina no Hai Centre tem participação e protagonismo de cinco mulheres: Leah, Anitte, Jane, Fanice e Violet. São estas as mulheres que tornam o trabalho com os nossos babies uma realidade, seja em sala de aula, seja na limpeza, seja no preparo dos lanches servidos para eles com muito carinho e amor diariamente.
Nossas teachers: Leah, Anitte, Jane, são mulheres que nasceram e moram na comunidade do Kabiria, cada uma chegou ao Hai Africa em momentos diferentes mas apresentam características similares: a dedicação pelo trabalho que executam e o carinho com que encaram a formação dos nossos babies. Todas têm formação em Pedagogia Waldorf e especialização em Psicologia da Infância, que foram custeadas por nós para que pudessem se aperfeiçoar.
Conta-nos nossa teacher Leah Kathambi: "Eu não consegui ir para uma faculdade, mas eu tinha o sonho de frequentar uma. Foi, por meio do Hai, que eu consegui ir para a faculdade. Venci na vida, eu sinto”. O que Leah relata sobre a dificuldade de frequentar a faculdade, infelizmente é uma realidade no Quênia, onde o número de matrículas de mulheres representa quase a metade do percentual dos homens. Além do baixo número de matrículas, a evasão escolar é uma realidade presente quando elas conseguem ingressar no ensino formal. Segundo dados das Nações Unidas, as mulheres quenianas em zonas urbanas têm em média 11 anos de estudo, enquanto nas zonas rurais chegam apenas a 2 anos.
Trecho extraído do relatório a Oxfam “a educação de meninas na África” alerta que: “O desenvolvimento educacional de meninas, por exemplo, varia muito por causa de fatores culturais, econômicos e geográficos. A religião, a distância de centros urbanos, as práticas de casamento, os padrões de migração, o castigo das doenças, as demandas sazonais de trabalho e os fluxos de caixa, entre outros fatores, contribuem para as diferenças em termos de matrícula e da retenção de meninas dentro do mesmo país.”
Isso nos traz um alerta para um cenário de pandemia em que além das adversidades já presentes, outras podem surgir em meio às incertezas econômicas das famílias e que possam representar o êxodo para zonas rurais em busca de acolhimento e alimentação.
Outra triste realidade, além das relatadas, é a pobreza menstrual das meninas que encontram-se na puberdade e nos processos de transformações que seu corpo encontra, fato que leva milhares a desistirem dos estudos. Além disso, os tabus que envolvem a saúde da mulher e a vergonha que predomina sobre o tema faz com que o assunto viva cercado de mitos e superstições.
Mas para Fanice e Violett, a realidade para seus filhos pode ser diferente, já que além da escolarização eles estão conhecendo um mundo diferente e que infelizmente elas não puderam ver que é a escola: “Eu era uma mãe solteira. Como conseguir uma vaga na escola? Era muito difícil. Mas estou feliz porque minha filha está na escola”, diz Fanice Mukoma.
O relato parecido é de Mary Wanjiku, mãe de dois dos nossos babies e moradora da comunidade do Kabiria: “Vocês deram a educação do meu filho. Eu estou feliz, da maneira como fui criada...com meus filhos não será assim. É isso que eu quero, eu quero que meus filhos sejam escolarizados”.
É isso que nós também queremos, Mary, e vocês têm uma participação muito importante na construção desta história.
Por: Katiane Bispo
Voluntária, faz parte do Comitê de Diversidade e Inclusão do Hai Africa.